Texto escrito pelo associado Everton Santana (CRP 05/51039), psicólogo clínico e do esporte e mestrando em Educação Física (LaPE/EEFD/UFRJ)
No Brasil, são praticados diversos esportes. O mais popular, com certeza, é o futebol, mas não é difícil encontrar pessoas que praticam voleibol, basquete, tênis, jiu-jitsu, judô, natação, ciclismo e muitos outros. No entanto, um esporte que tem ganhado muita popularidade nos últimos anos é a corrida de rua. Seja pela praticidade da prática, pois basta ter um tênis e correr, ou ainda pelo boom da busca por atividades ao ar livre após o período da pandemia, diversas pessoas têm encontrado na corrida uma forma de diminuir o estresse, ganhar qualidade de vida e, por muitas vezes, socializar com outras pessoas. É possível ver esse aumento do interesse na corrida de rua ao observarmos dados relacionados às provas de corrida que acontecem em diversas cidades. No evento da Maratona do Rio, que ocorreu entre o final do mês de maio e início de junho e que é um dos principais eventos da modalidade, por exemplo, houve recorde de inscrições (45 mil), sendo que 81% dessas pessoas eram de fora da cidade. Um número bastante expressivo de atletas amadores que buscam tanto a diversão e o bem-estar relacionados à prática quanto níveis de desempenho cada vez maiores dentro da corrida.
Mas o que a psicologia do esporte tem a ver com isso? Como escrito anteriormente, diversos corredores buscam a corrida de rua por diferentes razões. Alguns a procuram para diminuir o estresse, outros querem socialização, e há aqueles que sonham com o rendimento (como os famosos índices de tempo das provas Majors, consideradas as maiores maratonas do mundo), dentre vários outros motivos. Dependendo do objetivo, poderão surgir diversas questões que atravessam o campo da psicologia do esporte. Abaixo seguem algumas das questões que atravessam a vida dos corredores e como a psicologia do esporte pode auxiliar esses atletas (sejam amadores ou profissionais).
A corrida de rua como uma forma de fuga da vida
Claramente, muitas pessoas buscam o esporte como um jeito de fugir de determinados problemas da vida, o que, na verdade, não terá problema algum, desde que a pessoa possa se organizar minimamente através da sua prática esportiva, nesse caso a corrida, e depois buscar solucionar o que a aflige. O problema passa a ser quando a corrida se torna uma forma de fuga da realidade ou da vida.
Essa relação é incrivelmente comum. A corrida é uma prática que libera diferentes substâncias na corrente sanguínea (endorfinas, dopamina, serotonina, entre outras) (VORKAPIC-FERREIRA et al., 2017) que auxiliam na regulação das emoções, ajudando, assim, na tomada de decisões e no alívio emocional. No entanto, esse mesmo mecanismo pode fazer com que corredores dependam unicamente da corrida como forma de regulação emocional e, apesar de ainda ser um assunto controverso, gerar uma dependência da corrida (LUKÁCS et al., 2019).
Psicólogos do esporte, então, atuam clinicamente nesses casos, compreendendo a função da corrida na vida das pessoas e trazendo à tona diversas dificuldades que perpassam a vida pessoal delas. A ideia central aqui é mudar a relação da pessoa com a corrida, ajudando na compreensão desses mecanismos evitativos e auxiliando na possível relação nociva que essa pessoa pode ter com a corrida.
A psicologia do esporte na ajuda relacionada à performance de amadores na corrida
Um fenômeno curioso na corrida é a busca por performance de muitos atletas amadores. Muitos desses corredores treinam de forma altamente disciplinada, buscando diversos índices dentro das corridas e se distinguindo de outros atletas amadores (THUANY et al., 2020). No entanto, é importante ressaltar que esse estilo de vida levado por esses corredores traz um campo propício para o trabalho tanto relacionado à saúde mental quanto à performance.
No que diz respeito à performance, muitos estudos têm mostrado diferentes formas pelas quais o treinamento de habilidades psicológicas pode auxiliar os corredores (JAENES et al., 2021; LANE; WILSON, 2011). O estabelecimento de metas, por exemplo, quando bem estabelecidas, pode ser essencial para que corredores alcancem seus objetivos dentro da corrida (BURDINA et al., 2017; FULTON et al., 2017). Já a auto fala positiva ou motivacional tem se apresentado como um recurso amplamente utilizado por corredores de longa distância para se manterem correndo (VAN RAALTE et al., 2015). Além das habilidades psicológicas clássicas, intervenções utilizando práticas baseadas em mindfulness têm mostrado efeitos interessantes na ansiedade competitiva, nas respostas autoimunes e no aumento do estado de mindfulness de corredores de longa distância (CORBALLY et al., 2020).
A saúde mental se apresenta como outra área que merece atenção. A corrida de rua é uma prática famosa por seus efeitos benéficos à saúde mental (MARKOTIĆ et al., 2020), no entanto, seus praticantes não estão isentos de transtornos psicológicos que merecem a atenção de profissionais da saúde. Na revisão sistemática realizada por Thuany e colaboradores (2023) sobre a saúde mental de corredores de ultramaratonas (corridas realizadas com uma quilometragem acima dos 42,195km), os pesquisadores chegaram a números alarmantes. Foram incluídos na pesquisa 11 estudos sobre saúde mental dessa população e avaliados 3.670 ultramaratonistas. Cerca de 32% a 62,5% dessas pessoas apresentavam sintomas de transtornos alimentares, 11,5% a 18,2% demonstravam comportamentos de uma possível dependência de exercícios, 18,6% tinham sintomas depressivos e 24,5% sintomas de distúrbios do sono. Apesar de ter que se levar em consideração que atletas, mesmo os amadores, não devem ser avaliados e comparados, em termos de saúde, da mesma forma que a população em geral, esses dados apontam para uma realidade que não pode ser ignorada.
Apesar de não haver um protocolo empiricamente fundamentado para o trabalho psicológico junto a corredores, há diversos artigos que fundamentam as diversas formas como é possível realizar esse trabalho, seja para a busca pelo rendimento ou o trabalho relacionado à saúde mental. Vale ainda ressaltar que, por mais que nesse texto se trabalhe essas duas áreas de forma distinta para elucidação das problemáticas desse público, não se deve olhar para essas áreas em separado. O rendimento de atletas, sejam eles amadores ou profissionais, perpassa pelo nível de saúde mental dessas pessoas, assim como também, em grande parte, para que um atleta possa ter saúde mental, ele necessitará alcançar os possíveis rendimentos que deseja, pois para esses corredores (e até atletas de outras modalidades), a saúde vem pelo senso de realização que advém de conseguir chegar ao objetivo que tanto se deseja.
O trabalho psicológico com as lesões na corrida
Não é incomum que corredores amadores ou profissionais tenham lesões decorrentes da prática de corrida de rua (KAKOURIS et al., 2021). Os motivos para essas lesões podem ser de ordem intrínseca, como fatores associados a questões fisiológicas e anatômicas, ou ainda extrínsecas, como a carga de treinamento (WEN, 2007). Os estudos têm destacado, principalmente, que o alto volume de treinamento e lesões anteriores são fortes preditores de lesões futuras, havendo assim a necessidade de um controle adequado das diversas variáveis do treinamento. Além disso, corredores também podem estar suscetíveis ao desenvolvimento do overreaching não-funcional, que representa a queda de desempenho de forma momentânea (de dias a semanas), assim como a síndrome de overtraining, quando há a queda de desempenho a longo prazo (BELL; INGLE, 2013).
Há um impacto profundo das lesões na identidade dos atletas, especialmente entre corredores que enfrentam afastamentos de longo prazo ou permanentes. A perda de identidade atlética é um trauma psicológico significativo que os atletas lesionados frequentemente experimentam, o que pode agravar o processo de recuperação devido ao sofrimento emocional associado a essa perda (LOCKHART, 2010). Esses atletas que se identificam fortemente com esse papel de corredor, quando acabam por ter lesões que os impedem de continuar a correr, podem ter uma crise severa de identidade. Essa crise é frequentemente acompanhada por sintomas de depressão e ansiedade, à medida que os atletas lutam para redefinir seu valor próprio e propósito além de seu desempenho esportivo (CHUN et al., 2023; SOUTER et al., 2018; PUTUKIAN, 2016). O processo de lidar com essas emoções é crucial; reconhecer e falar sobre a perda com pessoas de confiança ou profissionais de saúde pode ajudar significativamente no gerenciamento dos impactos psicológicos da lesão.
Conclusão
A corrida de rua se destaca como uma prática que vai além do exercício físico, incorporando-se na rotina de milhares de brasileiros como uma forma de alcançar bem-estar integral. Com uma simples atividade que requer apenas um par de tênis e disposição, ela oferece uma via acessível para a melhora da saúde física e mental. É uma prática que se adapta à vida moderna, permitindo que as pessoas encontrem equilíbrio e satisfação pessoal em meio ao ritmo acelerado do cotidiano.
A psicologia do esporte desempenha um papel fundamental no apoio a esses corredores, oferecendo estratégias para maximizar o desempenho e promover a saúde mental. Seja na superação de obstáculos pessoais, no manejo do estresse ou na manutenção da motivação, o suporte psicológico é essencial para garantir que a corrida de rua continue sendo uma fonte de prazer e realização. Assim, os corredores podem não apenas atingir seus objetivos, mas também encontrar um equilíbrio duradouro entre corpo e mente.
Referências:
BELL, Lee M.; INGLE, Lee. Psycho-physiological markers of overreaching and overtraining in endurance sports: a review of the evidence. Medicina Sportiva, v. 17, n. 2, 2013.
BURDINA, Mariya; HILLER, R. Scott; METZ, Neil E. Goal attainability and performance: Evidence from Boston marathon qualifying standards. Journal of Economic Psychology, v. 58, p. 77-88, 2017.
CHUN, Yoonki; WENDLING, Elodie; SAGAS, Michael. Identity Work in Athletes: A Systematic Review of the Literature. Sports, v. 11, n. 10, p. 203, 2023.
CORBALLY, Linda; WILKINSON, Mick; FOTHERGILL, Melissa A. Effects of mindfulness practice on performance and factors related to performance in long-distance running: A systematic review. Journal of Clinical Sport Psychology, v. 14, n. 4, p. 376-398, 2020.
FULTON, Adam M.; RICHARDSON, Jared; GRIFFITH, Kyler. Goal setting and goal achievement in marathon and half-marathon runners. 2017.
JAENES, Jose C. et al. The effectiveness of the psychological intervention in amateur male marathon runners. Frontiers in Psychology, v. 12, p. 605130, 2021.
KAKOURIS, Nicolas; YENER, Numan; FONG, Daniel TP. A systematic review of running-related musculoskeletal injuries in runners. Journal of sport and health science, v. 10, n. 5, p. 513-522, 2021.
LANE, Andrew M.; WILSON, Mathew. Emotions and trait emotional intelligence among ultra-endurance runners. Journal of Science and Medicine in Sport, v. 14, n. 4, p. 358-362, 2011.
LOCKHART, Barbara D. Injured athletes’ perceived loss of identity: educational implications for athletic trainers. Athletic Training Education Journal, v. 5, n. 1, p. 26-31, 2010.
LUKÁCS, Andrea et al. Exercise addiction and its related factors in amateur runners. Journal of behavioral addictions, v. 8, n. 2, p. 343-349, 2019.
MARKOTIĆ, Vedran et al. The positive effects of running on mental health. Psychiatria Danubina, v. 32, n. suppl. 2, p. 233-235, 2020.
PUTUKIAN, Margot. The psychological response to injury in student athletes: a narrative review with a focus on mental health. British journal of sports medicine, v. 50, n. 3, p. 145-148, 2016.
SOUTER, Gary; LEWIS, Robin; SERRANT, Laura. Men, mental health and elite sport: A narrative review. Sports medicine-open, v. 4, n. 1, p. 57, 2018.
THUANY, Mabliny; GOMES, Thayse Natacha; ALMEIDA, Marcos Bezerra de. Is there any difference between “amateur” and “recreational” runners? A latent class analysis. Motriz: Revista de Educação Física, v. 26, p. e10200140, 2020.
THUANY, Mabliny et al. Mental Health in Ultra-Endurance Runners: A Systematic Review. Sports Medicine, v. 53, n. 10, p. 1891-1904, 2023.
VORKAPIC-FERREIRA, Camila et al. Nascidos para correr: a importância do exercício para a saúde do cérebro. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, v. 23, p. 495-503, 2017.
VAN RAALTE, Judy L. et al. Self-talk of marathon runners. The Sport Psychologist, v. 29, n. 3, p. 258-260, 2015.
WEN, Dennis Y. Risk factors for overuse injuries in runners. Current sports medicine reports, v. 6, n. 5, p. 307-313, 2007.